A meia-atacante Mariel Hecher, de 29 anos, é a maior representante brasileira no futebol feminino australiano. Desde 2016 no país, ela largou a carreira no futsal brasileiro para se dedicar aos estudos, mas seu talento para o esporte falou mais alto e a colocou nos gramados de forma inesperada.
Mariel é uma dos personagens da série de podcasts “Uma pitada de Brasil no futebol australiano”, da SBS em Português.
Do futsal para o futebol
No Brasil, Mariel sempre jogou futsal, desde os seis anos de idade até atuar profissionalmente no estado de São Paulo, onde atuou principalmente entre Araraquara e São José dos Campos.

Mariel em quadra, quando atuava no futsal no Brasil. Source: Supplied
Mas ao chegar no país ela quis procurar um time para jogar aos finais de semana, só para não ficar parada.
“Eu comecei a mandar uns e-mails para uns times e um brasileiro respondeu. Eu fui jogar no time de futsal dele, adorei e isso me abriu as portas aqui."
Ela conta que uma das colegas de time disse que o pai era técnico de futebol de campo e que precisava de gente no time dele. "Foi assim que eu comecei no futebol aqui na Austrália, em 2017”.
Futebol profissional
Nos primeiros anos de futebol, Mariel atuou pelo Lions FC, clube da National Premier League de Queensland. Ela então foi convidada para treinar com o elenco do Brisbane Roar, com atletas que faziam parte da seleção australiana. Um desafio e tanto, que ela enxergou como uma oportunidade imperdível.
“Era treino todo dia, eu não iria receber absolutamente nada, tive que ir morar em Brisbane. Foi uma grande mudança na minha vida".
Mesmo sendo um desafio, Mariel disse que foi uma oportunidade que ela 'agarrou com as duas mãos', porque sabia que iria ajudá-la a se desenvolver como atleta e que ela iria aprender muito.
O começo pelo Roar não foi fácil. No primeiro ano pelo clube, Mariel terminou sendo preterida por outra jogadora internacional, já que os clubes tem limites de estrangeiras, as chamadas Visa Players.
“Treinei uma temporada com o Roar e quando voltei ao Lions percebi que meu entendimento do jogo e habilidade melhoraram 100%. No ano seguinte voltei a treinar, mas eles preferiram outra menina vinda de fora, e tudo bem. Segui treinando duro".

Quando Mariel foi convidada em 2017 para treinar com o elenco do Brisbane Roar, com atletas que faziam parte da seleção australiana, ela enxergou como uma oportunidade imperdível e encarou o desafio. Source: AAP / LUKAS COCH
O fechamento das fronteiras na Austrália por causa da pandemia mudou tudo e, de certa forma, 'ajudou' Mariel a ter sua primeira oportunidade. Desde que entrou em campo, ela não saiu mais do elenco principal do time.
"Quando aconteceu a Covid, as fronteiras fecharam. Sem muita gente vindo (para o país) eles falaram: ‘vamos olhar pra quem está por aqui’. E foi aí que tudo aconteceu”.
Quando chegou a COVID-19, as fronteiras fecharam. Sem muita gente vindo (para o país) eles (treinadores) falaram: ‘vamos olhar pra quem está aqui’. Foi aí que tudo aconteceu.Mariel Hecher, jogadora do Brisbane Roar
Futebol feminino no Brasil e na Austrália
O contexto do esporte na Austrália, com footy (futebol australiano), rugby e cricket mais populares que o futebol, principalmente entre os homens, facilitou o desenvolvimento do futebol entre as mulheres.
Para Mariel, a cultura do país também faz com que o preconceito seja menor que no Brasil, onde ela enxerga as coisas mudando para o futebol feminino.
“Eu acho que os australianos são mais cabeça aberta, eles não tem isso de ‘lugar de mulher é na cozinha’. Eles sempre foram abertos com relação a direitos de homens e mulheres".
Mariel considera que o futebol feminino 'meio que' leva o futebol masculino na Austrália.
"Pode ser porque em cenário mundial as australianas estão em times mais renomados que os australianos. Você tem a Sam Kerr no Chelsea, a Catlyn Foord no Arsenal, enquanto os jogadores do masculino jogam em países como a Escócia, por exemplo. O peso é diferente”.
Ela acrescenta: “no Brasil as coisas estão melhorando, mas o fato do masculino ter sido sempre o carro chefe colocou as gurias de escanteio. Isso está mudando com a CBF se posicionando, transmissões em rede nacional".
No Brasil as coisas estão melhorando, mas o fato do (futebol) masculino ter sido sempre o carro chefe colocou as gurias de escanteio.Mariel Hecher, jogadora do Brisbane Roar
Mariel chama a atenção para uma discussão muito grande sobre 'o futebol feminino não dar dinheiro porque não vende’.
"Não vende porque ninguém põe os jogos às 16h na TV aberta. Como tu vai ter patrocínio se não tem essa exposição? Então acho que a gente está vencendo essa discussão”.
Boa fase
Indo para sua terceira temporada com a camisa do Brisbane Roar, Mariel se sente privilegiada em poder desfrutar de tudo que o esporte profissional a proporciona.
“É um privilégio, mas também uma baita aventura. Eu adoro! Sou muito competitiva, e saber que eu posso competir no nível mais alto na Austrália é sensacional".
É um privilégio, mas também uma baita aventura. Sou muito competitiva. Saber que eu posso competir no nível mais alto do futebol na Austrália é sensacional.Mariel Hecher, jogadora do Brisbane Roar
Mariel destaca o entendimento e o treinamento no time. "A parte mais chata é o condicionamento físico, que é mais elevado, mas é maravilhoso. É um baita privilégio fazer isso e ainda receber um salário pra fazer isso".
Duas carreiras
Além de atleta profissional, Mariel divide sua rotina no futebol com os trabalhos como osteopata. Ela conta que no começo foi bem difícil, mas que com a ajuda dos chefes ela conseguiu se adaptar bem e hoje até gosta da vida dupla.
“Esse ano meus chefes foram sensacionais. Antes da liga começar eu falei pra eles que iria cortar minhas horas de trabalho e eles falaram que estariam felizes de fazer o que fosse necessário para que eu pudesse jogar bem. Eles estão sendo meu maior suporte aqui".
Segundo Mariel, ter jornada dupla é difícil, mas "dá pra fazer": "durante a NPL (National Premier League) meus treinos são à noite. Durante a A-League Women meus treinos são de manhã. Então eu trabalho mais na parte da tarde. Nos meus dias de folga dos treinos eu trabalho mais horas (como osteopata). É um dia longo fora de casa, mas é compensador”.
Particularidades do futebol feminino
Na última temporada o Brisbane Roar chamou a atenção do mundo pelo que aconteceu a uma companheira de time de Mariel, a australiana Katrina Gorry.
Ela engravidou, chegou a atuar em alguns jogos sabendo que estava grávida, e retornou ao futebol em tempo recorde, três meses após dar a luz à pequena Harper, que passou a acompanhar a delegação do time nas viagens durante a A-League Women.

Katrina Gorry com a filha Harper após um amistoso das Matildas (seleção feminina australiana) contra a Suécia em novembro de 2022. Source: AAP / Noe Llamas/SPP/Sipa USA
Ela brinca dizendo que "nosso técnico que ficava preocupado porque toda hora tava todo mundo brincando com a criança sem prestar atenção no que ele tava falando na preleção (risos)".
Mariel diz que para o time foi gratificante ver a Katrina passar por tudo o que passou: participar de quatro jogos já grávida, sendo que as colegas já sabiam e não podiam contar pra ninguém, e acompanhar a volta dela aos campos depois de três meses do nascimento da filha. Ela afirma que a colega fez história no futebol feminino.
"O clube auxiliou com tudo para que ela pudesse jogar: babá durante a viagem, cadeirinha no ônibus, carrinho de bebê. Tomara que aconteça para outras meninas em outros clubes também. O resultado é uma pessoa motivada e inspirada em campo”.
O clube auxiliou com tudo: babá durante a viagem, cadeirinha no ônibus. Tomara que aconteça para meninas de outros clubes, pois o resultado é uma pessoa motivada e inspirada em campo.Mariel Hecher, jogadora do Brisbane Roar
"Ser convocada para a seleção brasileira seria um sonho"
Sobre os planos futuros, Mariel projeta continuar atuando no futebol australiano e não essconde que ser convocada para a seleção brasileira seria um sonho.
“A Copa do Mundo é aqui (na Austrália) ano que vem, então quem sabe uma convocação pra a seleção brasileira? Eu me sentiria honrada. Se eu sou boa o suficiente pra estar lá, não sei, mas jogar pela seleção é o sonho de qualquer jogadora".
A Copa do Mundo é aqui (na Austrália) ano que vem. Então, quem sabe uma convocação pra a seleção brasileira? Eu me sentiria honrada.Mariel Hecher, jogadora do Brisbane Roar
Mesmo que a convocação para a seleção não venha, Mariel afirma: "vou continuar jogando meu futebol. Estou me divertindo, fazendo com muita paixão. Me considero uma pessoa completa e vou tentar continuar fazendo isso enquanto meu corpo permitir”.
Copa do Mundo Feminina de 2023
A Austrália, junto com a Nova Zelândia, será sede da Copa do Mundo Feminina de 2023 e, estando em campo ou fora dele, Mariel espera poder usufruir do legado que será deixado pela competição ao futebol no país.

Mariel comemora com as colegas um gol de Katrina Gorry, à esquerda, pelo Brisbane Roar, durante jogo da A-League Women em Melbourne, em janeiro de 2022. Source: AAP / JOEL CARRETT
E completa: "Isso significa mais investimento nos gramados, centros de treinamento, clubes com melhor infraestrutura, o que vai ajudar a desenvolver mais atletas. Tem muitos pontos positivos e me sinto sortuda de ter isso acontecendo tão perto”.
Essa entrevista com a Mariel faz parte da série de seis episódios da SBS em Português "Uma pitada de Brasil no futebol australiano.
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