‘Dar voz às pessoas trans para diminuir o preconceito’ é objetivo dos criadores de ‘Traduzindo a Transição’

Felippe Marlon

O jornalista Felippe Canale e o editor Marlon Moro, idealizadores e produtores da série 'Traduzindo a Transição', da SBS em Português. Source: Supplied

O jornalista Felippe Canale e o editor Marlon Moro, idealizadores e produtores da série de podcasts da SBS em Português ‘Traduzindo a Transição’, contam nessa entrevista como tiveram a ideia do projeto, como foi o processo de gravação e que tipo de discussão e reflexão esperam gerar com esse conteúdo sobre imigrantes brasileiros em transição de gênero na Austrália.


No dia 31 de março deste ano, o Dia Internacional da Visibilidade Trans, criado pelas Nações Unidas, a SBS em português lançou a série de três podcasts ‘Traduzindo a Transição’, em que falantes da língua portuguesa compartilham suas histórias relacionadas à transição de gênero na Austrália.

A série está disponível em inglês e português, como as histórias de Wendlle Simões, brasileira de 32 anos que iniciou a transição há quase quatro anos na Austrália, Patrícia Martins, psicóloga brasileira que atende crianças, adolescentes e adultos em transição na Austrália, e Jakob Wright, de 17 anos que iniciou a transição de gênero aos 12, na Austrália, com o apoio da família brasileira.

Os idealizadores, produtores e realizadores dessa série desenvolvida para a SBS são o jornalista Felippe Canale e o editor Marlon Moro. Em entrevista à SBS em Português eles falam sobre o processo de idealização e realização de ‘Traduzindo a Transição’.

Escolha do tema

Felippe conta que ele e o Marlon sempre se interessaram por esse assunto justamente por ser um assunto que ainda é ‘tabu’ dentro da nossa sociedade. “A gente vê poucas histórias de pessoas trans e não-binárias ou de gênero diverso sendo contadas, seja pela mídia, por filmes ou até mesmo de pessoas que a gente conhece no nosso dia-a-dia.”

Ele atribui isso ao preconceito da sociedade, e conta que ele e o Marlon começaram a pesquisar para descobrir se já havia conteúdos sobre o assunto e descobriram que não havia algo nesse sentido, com falantes da língua portuguesa contando sobre suas experiências pessoais de transição de gênero. “A partir daí  surgiu a ideia de dar voz a essas pessoas, para que a gente pudesse ouvir as histórias delas e aprender junto com elas.”

Com a experiência de mais de dez anos produzindo conteúdo sobre sexualidade, com matérias e entrevistas publicadas em 14 idiomas diferentes, Felippe diz que ao ver essas histórias traduzidas, percebeu que a falta de representatividade contribui para o preconceito e a não-inclusão social da comunidade transgênero e de gênero diverso.

“Mesmo em países mais desenvolvidos, menos violentos e preconceituosos, ainda é raro ouvirmos histórias sobre pessoas trans. Isso nos impulsionou a querer dar voz para essas pessoas, já que a sociedade tem preconceito, seja por falta de conhecimento ou ao seguir ‘diretrizes’ relacionadas à religião por exemplo.”
Mesmo em países mais desenvolvidos, menos violentos e preconceituosos, ainda é raro ouvirmos histórias sobre pessoas trans. Isso nos impulsionou a querer dar voz a essas pessoas.
Felippe também chama a atenção para o fato de que em geral as pessoas não se interessam em ler ou pesquisar sobre a transsexualidade para entender o que as pessoas trans passam.

“Geralmente alguém só vai pesquisar sobre isso quando tem um filho, um sobrinho, ou um amigo que se identifica como trans. São assuntos que todos nós temos a obrigação de pesquisar e de nos livrarmos do nosso preconceito. Não cabe a nós ter algum tipo de preconceito. Cabe a nós abraçarmos a todos, principalmente as comunidades mais sensíveis.”
Geralmente alguém só vai pesquisar sobre isso quando tem um filho, um sobrinho, ou um amigo que se identifica como trans. Todos nós deveríamos nos informar para nos livrar do preconceito.
Escolha dos entrevistados

Felippe conta que chegar aos três entrevistados da série não foi tão simples, já que algumas pessoas têm receio de mostrar suas caras e expor as suas histórias, “até porque na internet rola muito ódio, muito preconceito.”

“A gente procurou em grupos do Facebook, perguntou a amigos e conhecidos. Através do grupo ‘Fruits from Brazil’, voltado para a comundiade brasileira LGBTQIA+ na Austrália,  falamos com a organizadora Nina Caxambu, que nos indicou a Wendlle Simões (brasileira que iniciou a transição na Austrália e foi a primeira entrevistada da série).”
A partir do contato com a Wendlle, Felippe conta que chegou à Patricia Martins, psicóloga brasileira que atende a Wendlle e outras pessoas em processo de transição de gênero na Austrália, segunda entrevistada da série.
E quanto ao Jakob Wright, terceiro e último entrevistado de ‘Traduzindo a Transição’, que tem 17 anos e começou a transição aos 12 com o apoio da família, Felippe explica que já tinha entrevistado a mãe dele, Luciana Wright, tradutora brasileira, para a SBS alguns anos atrás, e que ela falou justamente sobre como lidou com a descoberta de que o filho era trans e o processo de transição dele.
“Nós tivemos a sorte de encontrar essas três pessoas incríveis que corajosamente resolveram compartilhar as suas histórias. Esse conteúdo vem sendo produzido há mais de quatro meses. Juntos chegamos nessa naturalidade, em ficarmos a vontade para que eles compartilhassem suas histórias com a gente.”
Nós tivemos a sorte de encontrar essas três pessoas incríveis que corajosamente resolveram compartilhar as suas histórias publicamente.
Parceria com a SBS em Português

Marlon diz que a primeira parceria dele e do Felippe com a SBS em Português surgiu em 2017. “A gente tinha acabado de chegar na Austrália, estávamos com muita ‘sede’ de produzir novos conteúdos em vídeo, já que no Brasil trabalhávamos com isso desde 2015.”

Ele explica que “(Em 2021) foi aberto pela SBS um edital para novos projetos de podcasts. A gente se inscreveu com a proposta de fazer essa série sobre transição de gênero, para tentar normalizar esse tópico, e fomos selecionados.”

Para Marlon, a parceria com a SBS fluiu naturalmente. “Um foi completando as ideias do outro em termos de criação de texto, e isso fez com que o projeto, no final, se tornasse algo muito mais rico. Sem a plataforma da SBS, não seria possível chegar a tantas pessoas, informando, ensinando e impactando essas pessoas.”
Sem a plataforma da SBS, não seria possível chegar a tantas pessoas, informando, ensinando e impactando essas pessoas.
Homens gays aprendendo sobre pessoas trans

Marlon também diz que apesar de ele e do Felippe serem homens gays que integram a comunidade LGBTQIA+ e que já passaram por muito preconceito por causa da orientação sexual deles, antes de produzir essa série eles tinham apenas um conhecimento básico sobre o que as pessoas trans enfrentam no dia-a-dia.

“Eu acredito que somente pessoas trans e não-binárias realmente sabem como é vivenciar todo esse processo, todo o preconceito, toda a dificuldade na própria pele. Eu que sou um homem gay cisgênero, já sofri preconceito. Mas eu acredito que a gente sofre esse preconceito de uma forma muito mais leve.”
Eu que sou um homem gay cisgênero, já sofri preconceito. Mas eu acredito que a gente sofre esse preconceito de uma forma muito mais leve (do que as pessoas trans).
Felippe destaca que no processo de aprendizado dele e do Marlon sobre o ‘universo trans’ eles chegaram à conclusão de que existem pessoas que são trans mas nem sabem disso ainda porque nunca ouviram falar sobre o termo ou como uma pessoa transgênero se identifica, e que por isso vivem grande conflito interno.

E que também tem o caso das “pessoas que sabem que são trans, mas não admitem isso nem para a família e nem para os amigos. Elas passam a vida toda com aquele peso, aquele fardo de que não podem se assumir por medo de sofrerem agressões físicas e psicológicas.”

Felippe ainda diz que “somente falando cada vez mais sobre o tema, naturalizando o assunto, a gente vai conseguir chegar a uma sociedade que é justa e dá espaço para todos.”
Somente falando cada vez mais sobre o tema, naturalizando o assunto, a gente vai conseguir chegar a uma sociedade que é justa e dá espaço para todos.
E Marlon conclui: “A gente pode tentar construir um mundo melhor, fazer com que as pessoas se informem sobre esse tema e fazer com que esse assunto deixe de ser tabu na nossa sociedade. A gente precisa normalizar isso cada vez mais.”

Desinteresse e exclusão da sociedade às pessoas trans

Para Felippe, ainda há um desinteresse muito grande por parte da sociedade em geral em saber mais, entender e aceitar as pessoas transgênero.

“Acredito que as pessoas pensem assim: eu não faço parte dessa comunidade então não quero nem entender como essas pessoas se comportam ou o que sentem. Às vezes a pessoa vive tão na sua bolha que pensa que só a heteronormatividade ou a cisgeneridade é o natural, é o correto, e que a tudo que é diferente daquilo ela deve sentir aversão, preconceito.”

E pede: “vamos estender a mão a essas pessoas, conhecer as suas histórias e trazê-las para a nossa sociedade, porque a sociedade de sucesso é aquela que é justa e igualitária para todos.”
Vamos estender a mão a essas pessoas, conhecer as suas histórias e trazê-las para a nossa sociedade, porque a sociedade de sucesso deve ser justa e igualitária para todos.
Alcance da série

Com a série pronta e publicada, Felippe afirma que ele e o Marlon ficaram satisfeitos com o resultado.

“Principalmente depois de ouvir as pessoas que nós entrevistamos falando restabeleceram laços com a família, conseguiram se reaproximar de amigos do passado, além de pessoas entrando em contato com os entrevistados, dando parabéns a eles, falando que adoraram conhecer as histórias deles.”

E completa: “para a gente é muito gratificante saber que essas histórias tocaram no coração de tantas pessoas e que de alguma maneira puderam contribuir para diminuir o preconceito. E o fato de poder produzir essas histórias tanto em português como em inglês nos deixou muito felizes porque essas histórias acabaram chegando a mais pessoas.”
Para a gente é muito gratificante saber que essas histórias tocaram no coração de tantas pessoas e que de alguma maneira puderam contribuir para diminuir o preconceito.
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