Brasileira na Austrália ganha residência permanente após sofrer violência doméstica

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"Quando o meu visto de residência permanente foi aprovado, a sensação foi de alívio e de tristeza, porque os traumas estavam muito presentes dentro de mim," diz Laura (foto ilustrativa). Source: iStockphoto / Getty

Laura* imaginou que estava vivendo um relacionamento dos sonhos, mas tudo virou um pesadelo quando passou a sofrer abuso emocional, financeiro e sexual do seu ex-parceiro australiano. Ambos deram entrada no Partner Visa (subclasses 820 e 801) após um breve namoro, e enquanto esperavam pela resposta definitiva da imigração, tudo mudou. Laura conta que sofria chantagens e ameaças de quem sem ele, perderia o visto. Após buscar ajuda, ela conseguiu se separar e ter a sua residência permanente aprovada sem que o ex parceiro ficasse sabendo.


Pontos principais
  • Na Austrália, uma em cada seis mulheres sofre violência física por parte de um parceiro.
  • A estudante brasileira Laura provou que sofria relacionamento abusivo e conseguiu apoio do governo australiano para permanecer no país.
  • Cotas para violência familiar, como o direito à residência permanente, existem para permitir que candidatos ao “Partner Visa” possam deixar relacionamentos violentos sem o risco de perder o direito de residir na Austrália.
Versão online: Jason Mathias e Luciana Fraguas

*A pedido da entrevistada seu nome verdadeiro foi omitido para sua proteção.

Laura, 28 anos e residente da cidade de Sydney, começou um relacionamento com um australiano pouco tempo depois de chegar no país em 2018.

Após se conhecerem por algumas semanas, ele a pediu em namoro, e depois de três meses a levou para morar com os pais dele.

"Desde o início eu me dei muito bem com os pais dele. Eles me acolheram na casa deles e me tratavam super bem. Eu via neles uma nova família e era assim que eles me tratavam," diz.

"Poucas semanas depois de nos conhecermos, ele me pediu em namoro, e depois de três meses a gente já estava morando juntos na casa dos pais dele. Isso seria temporário, pois eu estava com viagem marcada para o Brasil para visitar a minha família. Mas aí veio o lockdown por causa da pandemia, fecharam as fronteiras, meu voo foi cancelado e não tive outra opção a não ser continuar ali morando com ele e os pais dele," conta.
Como ela estava em um visto de estudante, ele propôs um Partner Visa.

Eles entraram com o processo de reconhecimento de um relacionamento de facto.

Como Laura não podia arcar com os custos, foram os pais dele que pagaram por todo o processo - na época, algo em torno de AU$ 10 mil.
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"Naquela época, meu ex-parceiro argumentou que se eu fosse uma cidadã permanente, eu poderia ter melhores empregos e mais tranquilidade aqui na Austrália," recorda Laura. (foto ilustrativa) Credit: Dominic Lipinski/PA Wire
"Como estudante inernacional, eu não tinha muita estabilidade nos trabalhos casuais, ainda mais devido ao lockdown e a falta de empregos, e além disso, eu estava sempre pagando cursos de estudante para poder permanecer no país. Desta forma, demos entrada no processo e pouco tempo depois eu estava com o meu partner visa temporário aguardando a decisão da imigração," recorda.

No começo do relacionamento, Laura conta que o parceiro a "elogiava o tempo todo, era alegre, educado e simpático”.

Ainda segundo ela, “ele tratava os meus amigos bem e era muito carinhoso comigo. Parecia tudo um sonho!”.

"Eu cheguei na Austrália em junho de 2018 como estudante, e conheci o meu ex partner em outubro de 2019. No total, ficamos três anos juntos. Ele é australiano, nascido e criado em Sydney, e tudo aconteceu muito rápido - quando percebi, eu já estava envolvida emocionalmente. Eu acho que quando estamos longe da família e amigos, fora do nosso país de origem, acabamos nos sentindo mais sozinhas e carentes de afeto," diz Laura

Mas isso foi mudando, durante o lockdown da Covid-19, quando eles se mudaram para uma casa afastada do centro da cidade, num bairro mais remoto de Sydney, longe dos olhos da família dele e dos amigos.
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Laura conta que ele nunca chegou a bater nela, mas os abusos iam ficando cada dia mais intensos.
De um parceiro romântico e carinhoso, ele passou a me criticar em tudo o que eu fazia, inclusive, do meu jeito de me comportar.
"A convivência me mostrou um lado dele que eu não conhecia"

"Em menos de um ano de relacionamento, nos mudamos sozinhos para uma casa longe da cidade durante o lockdown e os abusos começaram ali, longe dos pais dele e também dos nossos amigos," recorda Laura.
Quando percebi, estava dando todo o meu salário para pagar as contas de casa. Nós começamos a ter muitas brigas e, às vezes, ele me colocava para fora de casa e eu não tinha para onde ir. Uma vez, tive que ligar para uma amiga e pedir para dormir na casa dela.
"Ele começou a mudar de comportamento, só querendo ficar em casa jogando videogame, e não me ajudava nas tarefas domésticas. Eu chegava em casa cansada depois do trabalho e precisava fazer de tudo, desde a limpeza e também a cozinhar para nós dois.
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"De um parceiro romântico e carinhoso, ele passou a me criticar em tudo o que eu fazia, inclusive, do meu jeito de me comportar. Ele estava sempre me diminuindo como pessoa - me mandava falar menos, reclamava quando tinha que ir ao mercado fazer compras comigo, falava mal dos meus amigos, e dizia que eu era a culpada por tudo que dava errado na vida dele, " relata Laura.

"Os abusos foram ficando cada vez mais intensos"

Laura conta do abuso financeiro que sofreu.

"No começo, eu trabalhava e dava mais da metade de todo o meu salário para ele. Mas depois isso foi mudando e, quando percebi, estava dando todo o meu salário para pagar as contas de casa.

"Nós começamos a ter muitas brigas e, às vezes, ele me colocava para fora de casa e eu não tinha para onde ir. Uma vez, tive que ligar para uma amiga e pedir para dormir na casa dela.
Eu estava em uma situação vulnerável e ainda o amava muito, então, eu não conseguia achar uma solução, pois eu sempre tinha a esperança de que isso era apenas uma fase ruim e iria passar.
*Laura, estudante na Austrália
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"Ele me trancava fora de casa," diz Laura Credit: gaiamoments/Getty Images
Abuso financeiro, emocional e sexual

"Com o tempo, ele passou a ficar viciado em pornografia online e queria fazer sexo comigo até três vezes por dia, mesmo quando eu não queria ou me sentia a vontade," recorda.

Quando eu tentava argumentar, ele dizia que o meu Partner Visa ainda era apenas temporário e que ele poderia cancelar a qualquer momento. Desta forma, eu fui ficando cada vez mais insegura e a minha autoestima ficou muito abalada. Eu comecei a ter crises de ansiedade, insônia e depressão.

A minha família e amigos não sabiam de nada

Laura conta que como a família estava no Brasil, ela preferiu não revelar os abusos. "Eu sentia muita vergonha e não queria preocupá-los."

"Além disso, o meu ex era super simpático com todos e eu tinha medo de que a maioria das pessoas não acreditassem em mim.
Quando a gente vive uma situação de abuso doméstico, demora pra gente entender o que está acontecendo. Em alguns casos, a pessoa vive durante muitos anos dentro de uma prisão e nem se dá conta disso, " diz.
In Australia, violence against women is called many different things, including domestic violence, family violence, intimate partner violence, sexual harassment and sexual assault.
Em 2021, uma em cada três mulheres migrantes na Austrália haviam sofrido violência doméstica. Source: Getty
"O fim do lockdown foi a minha liberdade para escapar daquela situação"

"Assim que o lockdown acabou em Victoria eu consegui comprar as passagens para o Brasil com ajuda da minha família. O meu ex achou que eu estava indo apenas para visitá-los, então, esta foi a minha chance de fugir daquela situação. Chegando no Brasil, eu finalmente terminei o relacionamento com ele e comecei a ir atrás dos meus direitos, já que o meu partner visa temporário estava para vencer. 

"Eu pesquisei bastante e procurei uma agente de imigração especializada em violência doméstica. Foi aí que ela me disse que eu precisaria voltar para a Austrália para abrir o processo na imigração e tentar que o meu visto de residência permanente fosse aprovado," recorda Laura.

"Abrindo o processo para a minha residência permanente" 

"Depois de passar quase dois meses no Brasil me recuperando física e mentalmente, eu voltei para a Austrália sem o meu ex saber. E foi com a ajuda e direcionamento da minha agente de imigração que eu consegui laudos médicos e psicológicos que comprovaram todos os abusos que eu sofri.

"Inclusive, assim que terminei o relacionamento, ele entrou em contato com a imigração e tentou cancelar o meu partner visa temporário. Ele me disse que eu nunca mais conseguiria voltar para a Austrália e esta era a sua vingança por eu ter terminado com ele. De toda forma, mesmo quando o partner entra em contato com a imigração para cancelar um visto, o governo australiano entra em contato com a outra parte para ouvir a versão dela," explica Laura.

O meu visto permanente foi aprovado três meses após eu abrir o processo

"Quando o meu visto de residência permanente foi aprovado, a sensação foi de alívio e ao mesmo tempo de tristeza, porque os traumas e questões emocionais ainda estavam muito presentes dentro de mim.

Laura conta quem em apenas três meses após a aplicação, a sua residência permanente estava aprovada e ela pôde iniciar o processo de cura física e mental.
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"Quando está se separando, é muito importante ter um acompanhamento psicológico e se cercar de amigos e familiares que te amam, pois não é fácil," diz Laura Source: Getty / In Pictures Ltd./Corbis via Getty Images
O governo australiano garante sigilo no processo para proteger a vítima

É importante dizer que quando a pessoa entra com um processo de violência doméstica na imigração, o parceiro não fica sabendo de nada, ele não é notificado, independente do resultado.

O governo australiano analisa e julga todo o processo em sigilo absoluto para garantir e preservar o bem estar da vítima.

Vale lembrar que mesmo ainda estando com o partner, é possível abrir o processo em segredo, ainda que ambos estejam morando juntos ou separados.

"Eu nunca mais vi o meu ex desde que saí de casa. Depois de tudo o que aconteceu, eu acredito que seja melhor assim," diz Laura.

"Meu conselho para que está num relacionamento abusivo" 

"A sua vida e integridade pessoal é muito mais importante do que um relacionamento!

"Eu tive a ajuda de uma psicóloga, de um médico, de uma agente de imigração, da minha família e de amigos. E mesmo assim não foi fácil.

"Às vezes, é muito difícil perceber que está em uma relação tóxica e abusiva, então, saiba que a culpa nunca é sua. O mais importante é a sua felicidade, bem estar, saúde física e mental," diz.
Valmor Gomes Morais
Valmor Gomes Morais, Presidente da Associação Brasil e Austrália em Queensland. Source: Supplied
A SBS em Português conversou também com Valmor Gomes Morais, ex Cônsul do Brasil em Queensland e Presidente da Associação Brasil e Austrália em Queensland.Segundo ele, os casos de violência doméstica contra mulheres imigrantes são complexos e a recomendação é que elas procurem frontlines específicos para esta categoria. Ele também disponibilizou um passo-a-passo de como o processo deve ocorrer nestes casos:
  • A vítima pode procurar um serviço de ajuda no seu estado;
  • O serviço abre uma pasta com as informações da vítima;
  • Se for uma emergência, eles também organizam um “escape plan” (plano de fuga) para a vítima;
  • Em paralelo, também são organizados serviços de apoio, como ajuda financeira (que pode chegar até 5 mil dólares), um refúgio temporário (em local seguro e longe do agressor) e a conecta com serviços jurídicos.
Os serviços jurídicos organizam processos, como:
  • Processo de Proteção à vítima (DVO Magistrates Court)
  • Processo de Família (Family Court)
  • Processo de Visto (Departamento de Imigração)
  • Consultas com psicólogos
  • Consultas com médico para monitorar as condições da vítima
Apoio e aconselhamento financeiro, emocional e jurídico para vítimas de violência doméstica e familiar está disponível pelo pelo 1800 737 732 ou pelo pelo 13 11 14.

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