A vida em Alice Springs em meio à onda de violência

ALICE SPRINGS TOWN CAMPS HOUSING

Criança brinca em um dos 'Town Camps' de Alice Springs: escalada da violência gerou novas restrições ao consumo alcoólico. Requisição partiu também de comunidades indígenas. Source: AAP / DAN PELED/AAPIMAGE

O governo está reintroduzindo as restrições de compra de bebidas alcoólicas por comunidades do Território do Norte. O pano de fundo: a escalada de furtos e violência doméstica, e a tensão racial entre moradores brancos e aborígenes. Conversamos com o brasileiro Cristiano Castro, que vive na cidade e é coordenador de segurança de comunidade indígenas.


O governo do Território do Norte começa nesta semana a reintroduzir leis que limitam o consumo de álcool em determinadas regiões remotas. A meta é impedir provisoriamente que residentes em dezenas de áreas aborígines comprem bebidas alcoólicas e levem para casa até que um plano duradouro de limitação do consumo em acordo com as comunidades seja posto em prática.

Esta é uma decisão de emergência a partir da escalada de violência em Alice Springs nos últimos meses. Mas essa não é uma história que começou ontem.

Violência explodiu depois do fim do banimento de bebidas alcoólicas.

A vida em Alice Springs, no Território do Norte, tem pouco ou nada a ver com a vida nas cidades litorâneas da Austrália. Localizada quase no centro geográfico do continente, a isolada cidade de pouco menos de 30 mil habitantes e temperaturas extremas vive majoritariamente do turismo no Outback.

Mas não é só a geografia que muda. Recentemente, Alice Springs tem sido destaque nos noticiários por conta de uma onda de violência - em especial, furtos, arrombamentos e casos de violência doméstica. Não que o volume anterior destes problemas fosse pequeno, para os padrões australianos.

O pano de fundo: uma histórica tensão racial e também desnível econômico entre a população branca e os povos aborígenes que há séculos habitam o deserto.

O fator novo que causou o novo pico de violência, segundo a polícia e também o serviço de saúde dos povos aborígenes da região, foi a liberação do consumo de álcool em comunidades remotas e acampamentos de Alice Springs - os chamados “town camps” - após 15 anos, em julho de 2022.
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Falta de lazer para jovens é um dos problemas apontados pela crise em Alice Springs. Source: AFP / AFP/AFP via Getty Images
O consumo de álcool historicamente tem gerado problemas de violência entre alguns dos povos indígenas da região. Algumas comunidades já tinham, por iniciativa própria, feito tentativas de banir o consumo alcoólico entre seus integrantes.

Porém, desde 2007, uma lei federal bania o consumo de álcool em várias comunidades do Território do Norte.

Segundo dados da polícia reportados pela ABC, os arrombamentos em propriedades comerciais registrados aumentaram de 538 para 838 em 2022, ano do fim da proibição. As invasões a residências também subiram de 820 para 1.005.

Casos de violência doméstica registrados tiveram um pico ainda maior, de 1.139 para 1.751 em um ano. Agressões associadas ao consumo de álcool foram de 903 para 1.396.

Na semana passada, o primeiro-ministro Anthony Albanese visitou a cidade e anunciou novas restrições ao consumo de álcool.
ANTHONY ALBANESE ALICE SPRINGS VISIT
O primeiro-ministro Anthony Albanese em Alice Springs. Source: AAP / PIN RADA/AAPIMAGE
Durante segundas e terças-feiras, não é possível comprar bebida em Alice Springs para levar para casa. Nos outros dias, as lojas de bebidas funcionam apenas entre 15h e 19 horas. Há limite de uma compra por pessoa por dia. Albanese também falou de um plano mais duradouro a ser votado pelas comunidades.

“As zonas secas permanecerão no local até que um plano melhorado de gerenciamento de álcool comunitário seja desenvolvido e acordado pelo controlador de bebidas no Território do Norte. E então terá de ser decidido pela comunidade local, com um limite de 60%.", disse o primeiro-ministro.

Tensão racial.

O clima não é bom na cidade, e ficou ainda pior depois de reunião entre moradores de Alice Springs para decidir o que fazer.

Segundo a ABC, por volta de 10% dos moradores do município compareceu ‘a reunião. Comerciantes brancos da cidade afirmaram que irão processar o Território do Norte para que arque com os prejuízos causados por furtos e invasões, já que, na visão deles, o governo territorial não foi capaz de garantir a segurança de suas propriedades.

A reunião foi suspensa depois que representantes dos indígenas protestaram ao acusar os comerciantes de se preocuparem apenas com os bens materiais e não em resolver os problemas das comunidades.

A perspectiva de um brasileiro que vive em Alice Springs.

Entre os quase 30 mil habitantes de Alice Springs estão algumas dezenas de brasileiros. Conversamos com um deles: Cristiano Castro é coordenador de segurança de comunidade indígenas.

Natural de Belo Horizonte, Cristiano está há oito anos na Austrália, onde veio fazer mestrado em gestão esportiva. Um serviço voluntário de inclusão social através do esporte o levou a trabalhar com povos aborígenes da região de Alice Springs, onde vive há quatro anos e meio. Trabalha junto às comunidades indígenas Amoonguna, Titjikala e Santa Teresa, majoritariamente do povo Arrernte (Lê-se "Arrandah"), prestando serviço similar a Guarda Municipal, em patrulhas.
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Cristiano Castro é coordenador de segurança de comunidade indígenas e vive em Alice Springs desde 2018.
Cristiano relata ter sentido um aumento na violência nos últimos meses.

"Estou aqui há quatro anos e meio e realmente percebi uma mudança na violência aqui na cidade. Cheguei em 2018 e vez ou outra tinha uns ‘ break ins' acontecendo, violência doméstica é comum por aqui também. E uma ou outra janela de carro quebrada por molecada ‘causando’ na noite."

Trabalhando junto às comunidades indígenas e vivendo em Alice Springs, Cristiano Castro confirma o noticiário de que a violência doméstica explodiu nos ”town camps”, que são os acampamentos de pessoas aborígenes.

Apesar do nome, a maior parte dos moradores vive em casas. São locais criados há muito tempo para acomodar indígenas que visitavam a cidade, mas que se tornou um lugar permanente.

Acaba que os 'town camps' ficaram um lugar inseguro para as crianças e adolescentes. Eles vão pro CBD. E aí fica descontrolado porque falta um tanto de política social, é uma conversa mais profunda
Cristiano Castro, coordenador de segurança de comunidades indígenas.
"Falta um lugar seguro pra essas pessoas irem. A polícia fica de mãos atadas porque é todo mundo menor, de 14, 16 anos. E pra eles acaba que fica sendo um game mesmo. Hoje em dia tá bem complicado. Eu evito ir ao CBD à noite para ir num pub, por exemplo, porqueposso deixar meu carro e, quando voltar, a janela dele estar quebrada. Deu uma escalada, sim, na violência desde o meio do ano passado."

Cristiano Castro sabe como é dura a vida em uma metrópole brasileira em relação a violência, que é uma das questões que mais trazem brasileiros para a Austrália. Mas ele entende que a sensação de violência hoje está até mais evidente do que ele via em BH - em especial, por ser uma cidade pequena.

"Comparando violência no Brasil, Belo Horizonte e Alice Springs, acredito que em Alice é mais ‘in your face’, sabe. Pessoal sempre comentando que alguém que teve um vidro quebrado do carro, ou uma casa que foi invadida, ou pessoal que roubou carro ou de algum business que foi invadido de noite. Aqui ta presente todo dia e é uma cidade pequena, a gente sempre conhece alguém que passou por isso. Em Belo Horizonte é aquele negócio de cidade grande. Depende de onde você vai, vai ficar mais esperto. Se você vai pro centro de noite, fica mais preocupado, e, alguns lugares você evita dirigir com o vidro abaixo ou não para no sinal vermelho. Acaba que a gente é mais preparado no Brasil, entra nesse modo defensivo, sempre alerta - e esse foi um dos motivos pelos quais saí do Brasil, era complicado essa questão da violência."
Em Alice eu sinto que o pessoal está nesse estado defensivo, sempre alerta, preocupado. E como muita gente não está acostumado com isso, fica um pouco mais difícil lidar.
Cristiano Castro.
"Mas, comparando no geral, eu vejo mais violência aqui em Alice Springs do que eu via em Belo Horizonte. "

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